Um enigma pode ter beleza em si próprio, independentemente da sua decifração. É o caso de certos versos de Fernando Pessoa:
Sol nulo dos dias vãos,
Cheio de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
A quem não entras na alma!
É dispensável decifrá-los para lhes sentirmos a beleza. em António de Sousa também se encontram muitos versos em que a beleza basta só por si. É o caso de poesias como esta:
A primeira infância
quere-se com seus pais
e a minha ignorância
é saber demais.
Há o luar fundo,
mas passei no vau
e desci ao mundo
sem pedra nem pau.
-Menino, donde é,
assim tão sózinho?
-Vou pelo meu pé
para o meu caminho.
e de todas aquelas em que conseguiu libertar, sem constrangimentos, a personalidade sequiosa de expressão. Com efeito, não obstante essa espécie de pudor que a metáfora protege, antepondo-se a qualquer a qualquer tradução desprovida de emoções, ansiedades ou desejos, sente-se que antónio de Sousa aspiraria a um abandono que não ousa. Tolhe-o não sei que receio de se banalizar, não sei que pudor de se dar tal qual. É muito possível que, de facto, o prestígio da sua poesia esteja mais na forma do que no "fundo", se me é permitido estabelecer tão escolástica distinção. Pelo menos o próprio António de sousa deixa-nos pensar assim. quando, por exemplo, diz:
Noite na cama.Sonho. Bons sapatos velhos
para os calos da alma
e lá vou eu, de viagem,
ao fundo da minha vida!
somos levados a pensar que, de facto, é a forma, não o fundo, que se reveste, aqui, de uma tão forte originalidade. Não é na essência que está, de facto, a originalidade mas na expressão, na forma. Tudo o que nela é estranho, singular, invulgar, difícil, belo realmente, é essa espécie de tessitura de sonho em que o poeta se oculta. A estranheza de "O Náufrago Perfeito2 começa no título. Não haverá uma certa desproporção entre entre a sua originalidade, quiçá forçada, e o sentido que, de facto, encerra? Perfeito náufrago é aquele que sossobra integralmente: um Robinson da vida. António de Sousa não se contenta em ser "perfeito náufrago", expressão em que cria, ao mesmo tempo, uma metáfora e o seu significado lógico. Não, António de Sousa quis ser o "O Náufrago Perfeito", aquele que entre os náufragos é de facto o náufrago completo, integral, excepcional. Bem pode ser que não tenha sido essa a intenção do poeta, mas é nesta confusão, nesta ambiguidade que se traduz, afinal, tudo o que temos tentado dizer. na poesia de António de Sousa o fundo é fácil e a forma complicada. António de sousa é um exemplo do poeta refugiado na metáfora para se enriquecer poeticamente.
Mas será assim? Não haverá na personalidade do autor de "Ilha Deserta" algo de mais profundamente original do que as metáforas com que reveste a sua poesia? Eis o que se não chega a ver claramente na sua obra. Nem mesmo neste livro, quiçá o mais o mais original, o mais pessoal de quantos tem publicado.
É muito possível que a expressão própria de António de Sousa esteja nessa espécie de humorismo metafórico que aflora em algumas das suas composições e rompe com o preciosismo metafórico que as domina. O "Náufrago Perfeito" não é um livro vulgar. António de sousa é um poeta inconfundível. Ficamos esperando, todavia, que se classifique mais. De livro para livro acentua-se mais a sua personalidade. O perfeito naufrágio é um passo em frente.
Artigo de João Gaspar Simões, in "Diário de Lisbôa", 21.2.1945