Felicidade, felicidade,
Ai quem ma dera na minha mão!...
António Nobre
Tão simples!... Fôssemos aves
e a vida era só voar
por céus de tintas suaves
que ninguém sabe pintar.
Fôssemos bichos do monte
em vez de sermos pastores:
tínhamos vinho nas fontes
e o prato-cheio das flores.
Fôssemos nós os ribeiros
tagarelas das quebradas,
não os tristes marinheiros
do mar das águas salgadas.
Fôssemos nós a candeia
de alumiar aos serões,
sem o mêdo da alcateia
e das rondas dos ladrões.
Fôssemos nós, meus amigos!
os gordos cachos das vinhas,
em vez de pobres mendigos
que pedem pelas alminhas.
Fôssemos como o pinheiro
tão assisado e plebeu
que as pinhas são mealheiro
onde tem sempe de seu!
Fôssemos antes o fogo
dalguma braza esquecida,
em vez de andarmos no jôgo
de luz e trevas da vida.
Fôssemos nós como as cabras,
as afilhadas da terra,
em vez destas feras bravas
com sêde e fome de guerra.
Fôssemos linho e frescura
para as arcas do bragal,
em vez desta carne impura
sempre em pecado mortal.
Fôssemos nós a vidraça
que é tão fiel para a luz,
em vez de sermos da raça
que pregou Cristo na cruz.
Fôssemos nós pedras mudas,
rudes, sem eira nem beira,
em vez de sermos o Judas
que se enforcou na figueira...
... Felicidade! ... Afinal,
fôssemos nós naturais
e limpos de todo o mal,
não era preciso mais!...
In "Caminhos" 1933
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