FALSETE
Maria João Brito de Sousa
31.08.08
Ainda clamam por mim horas carnais, e eu digo
o meu sermão de lágrimas irreal.
(Da lenha que arde mal,
o aceno das chamas é sem perigo:
só promessas de fumo, vagas cousas
inúteis, sujo o ar de formas imprecisas.)
- Coração meu, que nunca te enraízas
mas, fluido, pesas como as negras lousas!
Falhado que não podes estar só,
e aos que podem soas a pretextos!
Para quê desdobrar-te em magros textos,
se tu nem sequer sabes fazer dó?
Sete, setenta vezes sete-luas
e não estás nem perdido nem rumado!
Arredado,
em ti mesmo flutuas.
O corpo em alma , a renegar certeza,
pôr surdina ao instinto é só virtude?
- Pode ser mera falta de saúde
e, se é viver a medo, uma torpeza!
- Pecados? O pior é nem os ter!
(Ai de quem foge a se cumprir inteiro!)
A tristeza que faz ver um veleiro
na água morta de um porto, a apodrecer!
Terra, Céu, Mar - a Vida e tu - que nojo!
Espumas.
Ao vento da verdade, à flor da vaga,
qualquer nada te esmaga
e só morte ressumas!
In - "Terra ao Mar", Editorial Inquérito, 1954
Imagem - Fotografia de um pormenor do nº 1 da segunda série da
revista Presença.